(Some stories, in portuguese only, sorry, about the great Bento)
O meu primeiro clube foi o Riachense, depois o Goleganense e depois tive a felicidade de vir para o Barreirense, da I Divisão, quando tinha 18 anos. No Bareiro, fui internacional esperança, com 19 anos, e aí começou a saga que me levou ao Benfica, com 22 anos. A festa de homenagem ao Mário Coluna foi um momento decisivo na minha carreira. Era o Lev Yashin quem estava para defender a baliza da selecção estrangeira, mas não o deixaram vir, provavelmente por motivos politicos.
O José Augusto lembrou-se de mim e veio ao Barreirense pedir se eu podia fazer esse jogo. Foi num sábado, durante o dia. De um lado o José Henrique, o Humberto, o Messias, o Jaime Graça, o Simões, o Eusébio, o Artur Jorge, o Toni, o Nené, o Jordão, o Vitor Martins. Do outro uma Selecção do Resto do Mundo com o Bobby Charlton, o George Best, só para citar os mais importantes. Correu-me bastante bem, fiz uma segunda parte espectacular e um jornalista, o Carlos Arsénio, alcunhou-me de Yashin da Golegã. Foi a partir dai que o Benfica se interessou por mim, mas houve um problema em relação às verbas e eu tive que esperar 2 anos para chegar ao clube. Durante aqueles 2 anos o Benfica nunca mais me saiu do pensamento. Era o clube do meu coração. Mal soube do interesse do Benfica também fiz pressão junto do Barreirense.
Bento
Carrinha do peixe com cheiro a tabaco
Nenhum deles tinha carro na altura. Eu tinha uma Ford Transit e levava os meus meninos comigo. Era o célebre Grupo do Barreiro. Como iamos todos juntos sendo e eu era o mais velho, falávamos muito sobre o que seria o futuro deles no Benfica, sobre o clube, as dificuldades de cada um. Isso também ajudou muito aquele Grupo do Barreiro. Essa carrinha era uma carrinha de trabalho do meu sogro, que tinha o negócio do peixe. Servia para carregar o peixe e ir todos os dias para a praça. Durante praticamente toda a minha vida ajudei os meus sogros na vida deles. Muitas vezes, eram duas, três da manhã e lá estava eu na lota do peixe em Lisboa com o meu sogro. Ou a vender peixe ou a comprar peixe. Muitos sócios e adeptos do Benfica viam-me lá e ficavam surpreendidos. A carrinha não tinha muito cheiro a peixe porque tinha uma caixa especial que se metia e tirava. Se calhar a carrinha cheirava era a outras coisas...como o tabaco. Por vezes, quando chegávamos ao Estádio da Luz e abríamos a porta da carrinha e aquilo mais parecia uma chaminé. Praticamente todos fumavam. No meio deles eu era uma excepção. Só começei a fumar por volta dos 30 anos. O Carlos Manuel era quem mais fumava. Portanto, o cheiro a peixe era bem menos procupante que o fumo.
Um dia, numa dessas viagens de carrinha para os treinos, na ponte 25 de Abril apareceu ao nosso lado um senhor que também jogou no Benfica e no Sporting, o Pérides. Os sobrinhos dele, o Zé Luis e o Jorge Silva, iam dentro da minha carrinha. E começaram uma discussão, mas na brincadeira. Parámos em cima da ponte. Começaram todos a querer engalfinhar-se, mas era tudo teatro. Obrigámos centenas de carros a parar atrás de nós e quando chegámos a portagem o Pérides saiu do carro, os sobrinhos saíram da carrinha e foram abraçar-se. Bom, se não nos tivessemos pirado rapidamente tinha levado uma tareia das pessoas que ali estavam à espera de pagar a portagem. Ficaram ofendidas porque pensaram que era uma discussão séria e afinal aquilo não passava de uma palhaçada. Tinham acabado de estar quase 10 minutos a aturar uma brincadeira. Aquela carrinha mais parecia um transporte público. Eu ia pô-los a casa. Era como se fosse um motorista de uma carrinha escolar. E fazia a distribuição dos meus meninos. Mas fiz com gosto. Não estou nada arrependido. Só tinha era que ajudar.
Bento
[Basta passar as mãos pela história do Benfica para sentir a textura de umas luvas sagradas. Moldadas pelo suor, seriam depois esculpidas pelo tempo. Assim que Bento lhes pôs as mãos em cima, nunca mais as largou. Luvas que durante mais de uma década defenderam o indefensável. Foram muitas as vezes que o felino guarda-redes teve de esticar as peles muito para além do que seria humanamente possível. O homem que tornava mais pequena a baliza do Benfica, trocou uma vida no mar pelos pés na terra. O dia em que a sua assinatura rasgou o horizonte prometido, esse terá sido o salto da sua carreira. Mas depois desse, muitos outros entram para o cimo da memória colectiva. Aqueles que Bento dava de um poste ao outro, defendendo uma baliza como um animal que demarca o seu território. É provável que Eriksson tenha deixado à posteridade a frase que diferencia Bento de todos os outros: "Só fico descansado quando der um frango". Ele chegaria. E o treinador sueco suspirou. E se é verdade que entre os escombros do antigo estádio ainda lá estão os golos de Eusébio, também lá moram todas as defesas do Bento.]
O momento mais marcante da carreira... é fácil escolher: foi o recorde dos mil minutos sem sofrer golos. Naquele dia, o Estádio da Luz estava cheio. Não estava à espera que toda a gente se levantasse e me aplaudisse, com o jogo a decorrer. Foi um momento bonito. Nós tinhamos um relógio grande no estádio, junto a uma das torres. Como a imprensa levou toda essa semana anterior a falar sobre o record, as pessoas estavam mesmo à espera que o ponteiro do relógio atingisse os mil minutos para se manifestarem. O jogo não parou. Havia uma jogada a decorrer, mas as pessoas abstrairam-se do jogo para aplaudir o meu feito. Gritaram pelo meu nome. Comovi-me muito. Mas não me distraí. Até porque não queria sofrer um golo. No campo das emoções penso que este momento dos mil m inutos foi aquele que mais me tocou.
Esse recorde depois teve continuidade, até chegar a pouco mais de 1.370 minutos, altura em que sofri um golo contra o Malmoe, na Suécia, numa eliminatória da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Ainda bem que aquilo morreu ali. As pessoas exigiam mais e eu exigia mais de mim próprio. Era quase uma obcessão. Andava debaixo de uma pressão diabólica porque não queria sofrer golos. Só estava à espera do dia em que aquilo acontecesse. Acho que foi um recorde Mundial.
Bento
[Era uma espécie de autocarro não oficial do Benfica. Levava em cima da carcaça praticamente metade do plantel da equipa. Juntavam-se no Barreiro e só paravam do outro lado, no Estádio da Luz. Era a carrinha do Bento e chamavam-lhes o Grupo do Barreiro. Chegou a ser uma coisa conspícua, que deixava os dirigentes e treinadores de pé atrás. Mas era um passo em frente]
O Grupo do Barreiro
O denominado grupo do Barreiro era mesmo, a dada altura, um plantel dentro do próprio plantel. Todos os dias, de manhã, mas de uma dezena de jogadores cumpria um ritual quase sagrado para todos nós. A viagem do Barreiro para Lisboa, para o treino matinal, fazia-se quase sempre numa Ford Transit das antigas que era propriedade do Bento, nosso guarda-redes e da selecção e um dos mais antigos do plantel. Dentro daquela carrinha estava uma das maiores concentrações de talento por metro quadrado. Eu, o Bento, o Chalana, o Diamantino, o Frederico e por ai fora. O ambiente era quase sempre de folia, mas também de algum esmagamento. Literalmente. Houve ocasiões em que chegámos a viajar doze jogadores, acantonados num espaço que mal dava para metade de nós, à vontade. Nos dias de inverno mais rigoroso, com temperaturas mais baixas, o ambiente tornava-se mais irrespirável pois vários eram os nossos jogadores que fumavam, incluindo eu próprio, vicio que tinha desde a minha juventude. Muito fumo depois, com a ponte 25 de Abril para trás, a chegada ap Estádio da Luz chegava a ser para todos nós um alívio. Apesar das condições, o proprietário da carrinha, o Bento, não dispensava nenhum dos passageiros do obrigatório pagamento de vinte escudos para ajudar ao pagamento do gasóleo.
Era no entanto dinheiro bem gasto. ALi nasceu uma grande amizade entre todos e o reforço de um espirito de grupo que também se via em campo. Por vezes essas viagens tinha, acidentes de percurso, já que no trajecto a carrinha passava por um sítio onde era costume existir uma forte aglomeração de vendedeiras, que repicavam os seus pregões exibindo os seus produtos à curiosidade alheia. De cada vez que ali passávamos, alguns de nós, mais afoitos, abriamos uma das janelas da carrinha - desintoxicando os pulmões - e gritávamos algumas palavras de ordem, convenhamos, por vezes deselegantes e que deviam muito à etiqueta. Imediatamente eramos repreendidos no mesmo tom, ao mesmo tempo que a chapa da carrinha era brutalmente assaltada por todo o género de frutos entretanto arremessados pelas diligentes senhoras. Porém, um dia, o riso despregado no interior da carrinha cedeu o seu lugar a um grande e sobressaltado desconforto, quando, após os normais impropérios, fomos recebido por uma chuva de pedras que deixaria marcas muito visiveis nas portas e vidros desta espécie de mini autocarro do Benfica. O Bento ficou possesso e tivemos de fazer uma rápida angariação de fundos para pagar as despesas de reparação.
Essa carrinha, aliás, seria uma companhia mítica da nossa equipa porque era com ela que a dona Gertrudes, a mulher do Bento - uma senhora fantástica - corria o país todo atrás do Benfica e chegou mesmo a ir a Sevilha, com as mulheres de outros jogadores, para assistir ao jogo contra o Bétis num dos nossos primeiros embates na Taça UEFA. Uma loucura!
Carlos Manuel
O último frango em Craiova
O golo que mais me custou a digerir foi na época 82/83, nas meias-fina~is da Taça UEFA contra o Universidade de Craiova, na Roménia. Levei um aparelho de gesso porque me tinham partido a cana do nariz e fui armado em campeão. O Eriksson queria à viva força que eu jogasse nem que tivesse de partir o nariz outra vez. Fu ipara o campo de peito feito, estava a formar a barreira, o jogador do Craiova mete a bola por cima da barreira, vou para segurar a bola à vontade e quando dei por mim tinha a bola dentro da baliza. Não sei o que aconteceu, se a bola passou pelo meio das mãos, se quê...sei que ia para agarrar a bola e quando dei por mim tinha a bola dentro da baliza. Foi dos golos que mais me custaram a engolir. O que vale é que nós tinhamos um atacante chamado Filipovic, que já na parte final do jogo marcou o golo do empate (1-1). Passámos à final da Taça UEFA, porque na Luz tinhamos empatado a zero.
Ainda sobre frangos... o Eriksson perguntava-me sempre:"Qual é o dia em que vai dar um frango?" Eu fiquei meio atarantado:"Mas porquê, mister?" Resposta pronta dele:"Só quando der um frango é que eu fico descansado!" Acho que depois desse jogo em Bucareste, o treinador sueco ficou mesmo convencido.
Bento
Pára Bento
Foi Eriksson que teve de decidir o momento em que já não dava para continuar a minha carreira. Mesmo ai, foi de uma grande sensibilidade. A partir do momento em que parto o pé, com rotura de ligamentos, no México 86, as coisas mudaram completamente. Ainda estive um ano em recuperação, mas não consegui. Depois o Eriksson teve uma conversa muito séria comigo. Perguntou-me se eu queria continuar no clube, garantindo que com ele, eu iria ser o segundo, mas com funções importantes ao nível do balneário, ajudando o Neno e o Silvino:"Bento, o futebol para ti praticamente acabou." Eu tinha 39 anos. O meu último jogo no Benfica foi contra o Belenenses. Com 41 anos, 10 meses e 24 dias. Ainda sou o jogador com o título de futebolista mais velho a jogar no Estádio da Luz. O Eriksson pôs-me a jogar e fui o melhor jogador em campo para os jornalistas. Fiz uma exibição extraordinária. Acabei por roubar a UEFA ao Belenenses. Nesse jogo, pensei:"Como é que é possivel, com esta idade..." Nesse jogo com o Belenenses deixei o Eriksson a pensar duas vezes: quem é que ele iria pôr a jogar na final da Taça dos Campeões Europeus, que era na 4ª feira seguinte. No avião, quando iamos a caminho ,tive mais uma conversa muito séria com o Eriksson. Não havia qualquer razão para o Silvino sair da baliza. expliquei-lhe que se calhar aquele jogo com o Belenenses tinha sido uma sorte. Por isso as coisas ficaram logo ali definidas... A verdade é que se eu estivesse na baliza, as coisas podiam ter sido bem diferentes. Se calhar tínhamos mais uma Taça dos Campeões no museu. Eu adivinhei o lado de todos os penalties. Acertei em todos.
E transmiti isso ao Silvino. Se ele tem sido mais atrevido...O Eusébio até foi atrás da baliza para gritar com ele, para ver se ele seguia os meus conselhos. Enfim, o que está feito está feito.
Bento